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domingo, 16 de dezembro de 2007

Um homem e sua ferida


“O mal é como as mulas: teimoso e estéril”.
Victor Hugo


Era uma vez, há muito tempo, um homem velho que vivia de pedir esmolas numa rua de uma cidade qualquer deste imenso Brasil.
Para conseguir as contribuições colocadas, uma a uma, em uma lata que antes fora de vermelha e doce goiabada, o tal homem utilizava do artifício de impressionar as pessoas expondo, como que em oferta comercial, uma enorme ferida em sua perna direita.
A ferida, na verdade uma úlcera de varizes, infectada e semi-tratada, que produzia pus e algum sangramento o que fazia aumentar a expressão de sua miserável condição e também trazia moscas em ataque que o homem espantava.
Mas a tal ferida lhe era querida, pois garantia a subsistência do homem e de sua mulher. A dor era até pouca e suportável perante os benefícios oriundos daquele, digamos, negócio.
Um dia, chegaram uns membros de um movimento de luta contra exploradores de bolsões de mazelas e de atendimento a pedintes de rua. Ofereceram ao homem atendimento médico e possibilidade de outro trabalho o que seria parte do fim daquela coisa.
O homem, temeroso de ser taxado como pilantra, foi como que obrigado a acompanhar, pelo menos uma vez, aquelas pessoas do tal movimento.
Um médico o atendeu e constatou que a ferida era curável, pois bastavam bons e limpos curativos e alguma medicação por uns dias e com paciência tudo estaria resolvido, podendo o pobre homem conseguir outra ocupação que não a de pedinte, vítima de uma ferida.
Ao chegar a sua casa, sua mulher perguntou:
-Então, foi até o médico?
-Fui.
Disse o homem.
-O que ele disse sobre a sua perna?
-Vai ficar boa se eu quiser tomar um remédio e se eu fizer uns curativos.
O homem pensou em parar com tudo aquilo, em procurar meios mais honestos de ganhar a vida, de ganhar afeto e calor. Mas já tentou de tudo, arriscou-se e fracassou e lembrou-se de ter sido um dia explorado por um mendigo de rua que lhe pediu esmolas e mandou depois rouba-lo num assalto.
Porém, apesar disto tudo e além da sórdida vingança, o miserável aprendeu a gostar daquela coisa de pedir esmolas nas ruas. Sentado ou deitado ao calor sol, agasalhado nos dias de frio, nenhum esforço ou risco maior de alguma perda nem o abismavam.
Ainda mais, o mostrar a ferida dava-lhe além de dinheiro, um certo calor do carinho, o agasalho de uma certa atenção das pessoas. Ele gostava de ser uma espécie de espetáculo, de “estrela do show” perante os olhares piedosos das mulheres e dos homens. Gostava de ser vítima daquela ferida crônica.
O homem pegou os remédios e disse que faria os curativos.
Mas a cada noite após seu “trabalho”, no escondido de seu quartinho, cavoucava a ferida anulando a cura que teimava em acontecer e reavivava aquela doença, sua parceira, sua “muleta” do dia a dia e cada vez mais fugia do tratamento médico que lhe ofereciam.
E assim, voltando para a rua, o seu negócio da ferida cada vez mais prosperava. Agora era o mais conhecido pedinte das ruas da cidade!
Famoso! Nos jornais, a imprensa divulgava sua presença e sua mazela.
Ele tinha até sócios e empregados. Alugava o ponto comercial para outras vítimas de feridas, mediante certo percentual sobre as contribuições, e ocupavam a via pública com seu asqueroso espetáculo.
Quando vinham os fiscais da Prefeitura para tirá-lo dali acabando também com seu bolsão de miséria, o homem contatava um secretário do Prefeito, pagava certas moedas e tudo continuava na mesma. Até conseguiu uns trechos de cimentos novos nas calçadas públicas, feito só para ele e seus sócios nos lugares ocupavam.
Os clientes eram cada vez mais contribuintes de um certo pedágio, mas como ele fazia questão de dizer, davam “parcelas voluntárias”.
O homem auto-geria seu negócio das feridas.
Agora, já não andava mais de ônibus ou trem: tinha seu carro que ficava em um estacionamento ali perto. Ao sair do "trabalho”, banhava-se em um hotelzinho de alta rotatividade das imediações, trocava de roupa e colocava bandagens limpas.
Mas, quem se recusava a dar sua contribuição, era taxado de “inadimplente moral”.
Um dia, observando uns administradores de negócios parecidos, o homem conseguiu cobradores aos quais pagava percentual. Estes cobradores perseguiam nas ruas as pessoas que não deram ou pararam de dar esmolas e aquelas que não davam dinheiro numa espécie de processo de cobrança, alegando serem impiedosos que enriquecem à custa de um pobre doente. Mesmo os que nunca passavam pelas calçadas das feridas eram cobrados como enriquecidos à custa de pobres pedintes. Hoje, o homem se diz o dono do assunto das feridas. Hoje ele é o presidente da associação nacional das vítimas das feridas e nem mais precisa expor a sua própria lesão que até não lhe incomoda mais. Agora, vive do sofrimento dos outros miseráveis pedintes das vias públicas.
Mas quem vê e conhece sabe que não passa de mais um infeliz!

A constatação da miséria da fraqueza é companheira inseparável da infelicidade:
(o autor)

Assim, como o homem da história, que é baseada em fatos reais do nosso País, certas entidades regulamentares, instituídas, evitam a cura das mazelas de que tanto se queixam.
Por que seria a existência deste estranho apego ao aparente grande sofrimento, pela miséria, pelo chão das ruas, pela condição de vítimas eternas de algo que não querem curar?
Lucros que lhes dão a sobrevivência? Atenção das pessoas? Interesses em outras moedas, políticas por exemplo, os votos colecionados para um futuro possível mas incerto?
Certas entidades que se dizem esforçadas lutadoras pela solução de problemas enormes, na verdade vivem da própria mazela que, cronicamente, denunciam e dizem combater. Mas o fazem até o limite da solução, já que a todo custo de dissimulação e efeitos, evitam atacar diretamente o problema para não curar “ferida dos lucros” extinguindo o mal, e estranhamente, sobrevivem deste mesmo mal.
Até algumas vezes tentaram curar o mal, mas o fizeram usando um procedimento ruim e fraco e perderam a chance de resolvê-lo para sempre.
E voltam ao mesmo mal. Até o aceitam, convivendo e moldando formas de fazer o mesmo mal, mas sob os olhares piedosos dos passantes que lhes atiram atenção e moedas de todo tipo e valor.


Dr. Ricardo Augusto do Carmo Salgueiro

Médico
p/ Movimento RenoirLutero Livre

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